quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A CONSTITUIÇÃO DOS EUA


O PRODUTO DE EXPORTAÇÃO MAIS IMPORTANTE DO PAÍS



Os fundadores dos Estados Unidos da América elaboraram a primeira constituição escrita do mundo há mais de 200 anos. O legado desse documento histórico está presente hoje na maioria das constituições do mundo e continua a influenciar os formuladores dos textos constitucionais mais recentes. Ao celebrar esse importante documento, um ilustre especialista em assuntos constitucionais discute como o modelo de Filadélfia ajudou a transformar o mundo e como continua a servir de exemplo para a governança democrática.



A CONSTITUIÇÃO DOS EUA é o produto de exportação mais importante do país. Sua influência em todo o mundo se fez sentir desde o início. E mesmo onde essa influência não conseguiu produzir democracia e liberdade foi capaz de criar a esperança, segundo as palavras do presidente Abraham Lincoln, de um governo do povo, para o povo e pelo povo.



Vale a pena contar a história dessa influência. Os fundadores dos Estados Unidos da América idealizaram uma constituição que 1 representou um avanço único na luta contínua pela liberdade do ser humano. Acreditavam no princípio do governo constitucional e esperavam que essa forma de governar ganhasse importância além das fronteiras do país. Thomas Jefferson considerava a constituição um monumento permanente e um exemplo duradouro para outros povos. "É impossível," escreveu, "não [perceber] que todos os seres humanos estão aqui representados." O presidente John Adams estava convencido de que as idéias políticas norte-americanas afetariam profundamente outros países. Alexander Hamilton pensava que caberia ao povo norte-americano decidir a questão sobre se as próprias sociedades são capazes de constituir um bom governo. James Madison, presidente e colaborador dos Documentos Federalistas, acreditava que a posteridade ficaria em débito com os fundadores pelo alcance de sua realização política e pelos princípios de boa governança introduzidos na Constituição dos EUA.



Assim, os fundadores tornaram-se mestres [em explicações] do porquê e (mais importante ainda) de como escrever constituições. Seus principais alunos foram os franceses. O Marquês de Lafayette, a exemplo de outros críticos do antigo regime na França, tinha grande admiração por Jefferson. (Existe um texto preliminar da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 - considerado geralmente um dos mais importantes documentos de direitos humanos já escritos - com notas manuscritas por Jefferson nas suas margens.) Os acadêmicos franceses se reuniram igualmente em torno do governador Morris, um dos principais artífices da Constituição dos EUA [creditado como autor do preâmbulo "Nós, o povo dos Estados Unidos, a fim de formarmos uma União mais perfeita…"] em sua visita à Paris.



Mas os franceses não foram os únicos a exaltar os fundadores. A Constituição Polonesa, adotada em 3 de maio de 1791, precedeu em quatro meses o documento francês. Qualquer leitura cuidadosa da carta constitucional polonesa, a começar pelo próprio preâmbulo - confirma o estudo do modelo norte-americano. Além do mais, existem registros de consultas sobre constitucionalismo feitas a norte-americanos por acadêmicos alemães, austríacos, belgas, holandeses, espanhóis e portugueses e também por líderes do Novo Mundo. Um dos líderes do movimento revolucionário brasileiro, José Joaquim da Maia, encontrou-se com Jefferson na França para participar de tais discussões.



A PROPAGAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO



A partir do dia 17 de setembro de 1787, uma peça constitucional escrita passou a ser vista como um traço característico de nação. Atualmente, das 192 nações independentes do mundo, todas elas, com raras exceções, possuem uma constituição desse tipo ou planejam ter uma. Entre as exceções encontram-se o Reino Unido, Nova Zelândia e Israel – nações democráticas dotadas de uma jurisprudência constitucional sofisticada, mas sem nenhum documento específico que possa ser chamado de constituição. Comprometidas com o princípio de supremacia parlamentar, as constituições dessas nações consistem de vários decretos legislativos designados especificamente como “leis básicas” (no caso de Israel) ou de conhecimento jurídico que tem sido classificado como fundamental ou orgânico.



CONSTITUCIONALISMO NORTE-AMERICANO ANTES DE 1787



Os historiadores concordam geralmente que a primeira constituição a estabelecer as regras básicas para a criação de uma entidade governamental e política foram as chamadas Fundamental Orders of Connecticut de 1639; sabe-se que a Constituição de Virgínia de 1776 foi a primeira a usar a palavra “constituição”.



Logo após a Declaração de Independência, em 1776, as treze antigas colônias inglesas começaram a escrever uma nova série de constituições. Quinze delas foram publicadas entre 1776 e 1787 e seis das mais importantes em 1776. Entre elas encontram-se as constituições de Pensilvânia e Virgínia. Ambos os documentos despertaram interesse no exterior e começaram a ser traduzidos para outros idiomas, especialmente o francês, algumas semanas depois de divulgados. Outras cópias, seja em inglês, francês ou outro idioma, foram logo parar nas mãos de acadêmicos da Polônia, Alemanha, Áustria, Suíça e Espanha, e também do México, Venezuela, Argentina e Brasil.



Com a assinatura da aliança entre a França e os Estados Unidos em 1778, esses textos constitucionais dos Estados, que passaram a ser conhecidos como Code de la Nature, foram publicados em Paris. Em 1783, o ministro dos EUA em Paris, Benjamin Franklin, obteve do ministro francês de Relações Exteriores uma autorização oficial para a impressão em Paris das Constitutions des Treize Etats de l'Amerique. Em 1786, um ano antes da elaboração da Constituição dos EUA, o filósofo e matemático francês Marquês de Condorcet, ao sintetizar suas idéias para a formulação de uma declaração francesa de direitos, realizou um estudo sobre o papel das idéias políticas norte-americanas intitulado De l'influence de la Revolution d'Amerique sur l'opinion et la legislation de l'Europe.



O PRECEDENTE NORTE-AMERICANO



Foi a Constituição de Filadélfia, entretanto, que criou o precedente irreversível do constitucionalismo. Na época de sua elaboração e mesmo antes de sua ratificação, um curso sobre a Constituição dos EUA estava sendo dado pelo advogado Jacques Vincent Delacroix no Lycee de Paris, uma instituição gratuita de educação superior. Não se sabe ao certo quantos estrangeiros freqüentaram esse curso. Sabe-se todavia, que o curso atraiu um grande número de adeptos e se tornou o tema de uma série de artigos de peso no Le Moniteur, o jornal mais importante da França. Paris era então a capital intelectual da Europa e o centro para estudos sobre revoluções e suas conseqüências.



Os belgas foram certamente uns dos primeiros povos a sentir o impacto das novas idéias constitucionais, como comprova a revolução belga de 1789. O Partido Democrático Belga, que existiu por pouco tempo em 1790, buscava nas constituições estaduais norte-americanas os exemplos das propostas que defendia.



As primeiras influências da Constituição Norte-Americana sobre constituições nacionais se fizeram sentir nos documentos de 1791 da Polônia e da França. A Constituição Polonesa não conseguiu se manter por muito tempo. Desapareceu vítima de fracionamentos que, em 1795, acabaram por inviabilizar a existência da Polônia como nação independente até após a Primeira Guerra Mundial.



Esse não é o caso da Constituição Francesa de 1791. Embora tenha durado muito pouco tempo e tenha sido substituída pelas constituições francesas de 1793 e 1795, a força de seu conteúdo foi sentida especialmente na Espanha. A carta constitucional francesa inspirada na dos EUA foi usada como base da Constituição de Cadiz de 1812, que foi a primeira constituição espanhola. Essa, por sua vez, serviu de base à primeira Constituição Portuguesa em 1822. Essas constituições ibéricas já eram conhecidas por Simon Bolívar e outros heróis dos movimentos de libertação da América Latina e foram também decisivas na elaboração das constituições das novas nações das Américas.



Já no ano de 1784, Francisco de Miranda desenvolvia um "projeto para a liberdade e independência de todo o continente hispano-americano" e em sua pesquisa acabou se valendo da ajuda dos principais constitucionalistas norte-americanos. Como não conseguiu o apoio necessário, ele viajou para Londres onde se dedicou ao mundo dos negócios por mais de duas décadas. Voltou à Venezuela em 1810 para trabalhar com Bolívar no estabelecimento de um governo latino-americano com base na Constituição dos EUA. A história é testemunha de que a Venezuela, a Argentina e o Chile criaram suas primeiras constituições em 1811, um ano antes da Constituição de Cadiz na Espanha. Todas [elas] se basearam em parte no modelo de Filadélfia.



A Constituição Norte-Americana também influenciou o desenvolvimento do federalismo latino-americano. A Venezuela e a Argentina são Estados Federativos, assim como o México e o Brasil, tendo ambos adotado suas cartas constitucionais em 1824.



A Constituição Norte-Americana também encontrou adeptos na África. A Libéria, que havia sido colonizada por escravos livres dos Estados Unidos, adotou uma constituição em 1847 escrita em sua quase totalidade por um professor da Faculdade de Direito de Harvard.



O precedente criado pelos Estados Unidos tornou-se uma fonte de inspiração e modelo para as constituições européias após as revoluções de 1848. Nesse ano, os primeiros desdobramentos constitucionais importantes ocorreram na Áustria e na Itália, e novas constituições foram promulgadas na França e na Suíça. Também esse foi o ano em que a Constituição de Frankfurt, aquela que jamais seria implementada, foi elaborada. Ela foi utilizada em uma versão modificada para a elaboração de constituições alemãs posteriores, como a formulada para a Alemanha Imperial e a que estabeleceu a República de Weimar em 1919.



O colonialismo norte-americano levou a novos avanços constitucionais na virada do século. Cuba, Panamá e as Filipinas adotaram cartas constitucionais nacionais no estilo norte-americano. O colonialismo em questão é também perceptível na Constituição do Haiti anterior à Primeira Guerra Mundial, supostamente escrita pelo então secretário adjunto da Marinha, Franklin D. Roosevelt.



A Constituição do México, adotada em 1917, foi de longe a mais importante do período da Primeira Guerra Mundial. Ainda em vigor, embora tenha sofrido emendas freqüentes, é considerada uma das constituições históricas mais significativas. Foi a primeira constituição a reconhecer os direitos econômicos e culturais bem como os políticos. Sua estrutura interna e muito de sua linguagem foi tirada diretamente da Constituição de Filadélfia. Também no período entre as duas guerras mundiais, muitas nações latino-americanas reescreveram suas constituições, e o modelo de Filadélfia está presente em todas elas. As constituições do Chile e do Uruguai são exemplos excelentes nesse sentido.



Com o final da Segunda Guerra Mundial, a influência norte-americana foi determinante na preparação das novas cartas constitucionais da Alemanha Ocidental e do Japão. Menos divulgado, mas igualmente significativo, foi a adesão da Constituição da Índia de 1949 ao modelo de Filadélfia. Cópias dos relatórios da Suprema Corte dos EUA estão à disposição dos ministros da Suprema Corte da Índia, onde não são apenas lidos, mas citados com freqüência.



O estudo do constitucionalismo norte-americano após a Segunda Guerra Mundial acabou por despertar o interesse praticamente universal no papel da Suprema Corte dos EUA nas decisões sobre a constitucionalidade da legislação. Essa função foi igualmente desempenhada pela Suprema Corte da Índia e pela Suprema Corte da Austrália bem como por outros países regidos pelas normas do direito consuetudinário. Os países latino-americanos não podiam realizar nenhuma revisão constitucional porque suas estruturas judiciárias eram baseadas no direito comum. Entretanto, essas nações desejavam incluir o processo de revisão judicial. A solução foi o estabelecimento de tribunais constitucionais. Os primeiros foram estabelecidos na Alemanha e Itália, e eles têm se disseminado desde então por todo o mundo. O Tribunal Constitucional da Polônia (estabelecido nos anos 1980) foi o primeiro no mundo comunista. O Brasil, que promulgou uma nova constituição em 1988, reexaminou o seu sistema judiciário para determinar se deveria colocar a revisão judicial no âmbito da Suprema Corte ou criar um tribunal constitucional.



A Constituição de Filadélfia continua, assim, a produzir os seus efeitos. A Nigéria, o país mais populoso da África, descartou o parlamentarismo que havia herdado da Grã-Bretanha e que estava incorporado à Constituição da Independência. Em 1999, o país adotou uma nova constituição, incorporando o sistema presidencialista e encerrando anos de regime militar. A influência norte-americana ficou igualmente evidente nas constituições adotadas pelo Canadá e Honduras em 1982, El Salvador em 1983, Libéria em 1984, Guatemala em 1985 e as Filipinas em 1987.



PARA ENTENDER A INFLUÊNCIA NORTE-AMERICANA



Tudo isso leva a uma questão: como se explica a grande influência da Constituição Norte-Americana? Para começar, ela foi a primeira constituição e criou, assim, um precedente óbvio para todos os responsáveis pela elaboração de cartas constitucionais subseqüentes. Seus autores são na grande maioria advogados, e advogados estão sempre em busca de precedentes. Desde o início foram publicados comentários sobre a Constituição Norte-Americana, e ela foi analisada e estudada por advogados em todo o mundo.



Os fundadores dos Estados Unidos da América acreditavam em uma república com limites constitucionais e foram bem sucedidos na construção de um regime que buscava um perfeito equilíbrio entre ordem e liberdade. Isso fez com que um número cada vez maior de estrangeiros visitasse nosso país para estudar o estilo norte-americano de governar e depois recomendar a sua adoção em seu país de origem, ainda que limitada a determinados aspectos. Em muitos casos, isso foi possível graças às bolsas de estudo concedidas por fundações e universidades norte-americanas e às verbas do governo dos EUA. Também merecem ser citados aqueles estrangeiros que vieram ao país com outros objetivos e que foram igualmente inspirados pelo constitucionalismo norte-americano. Esse processo começou com Lafayette da França e Tadeusz Kosciuszko da Polônia, ambos oficiais no exército de George Washington que depois se tornaram líderes nas lutas pela liberdade em seus próprios países.



De forma inversa, a influência da constituição dos EUA chegou ao exterior levada por cidadãos norte-americanos convidados para atuarem como consultores na elaboração de outras constituições. Foram norte-americanos que ajudaram a elaborar as constituições liberiana, mexicana, alemã, japonesa e do Zimbábue. Os acadêmicos norte-americanos também contribuíram com idéias para a reforma constitucional nas Filipinas [e mais recentemente na Europa Oriental e no Oriente Médio].



A principal razão para a influência da Constituição de Filadélfia no exterior, no entanto, pode ser resumida em uma palavra - sucesso. Os Estados Unidos são o país mais rico, mais livre e mais poderoso do mundo, e sua constituição é a de mais longa duração. A segunda mais antiga do mundo é a da Bélgica, de 1831, seguida pela da Noruega, de 1841. Existem apenas quatro outros países com constituições escritas antes do século 20: Argentina em 1853, Luxemburgo em 1868, Suíça em 1878 e Columbia, personificação feminina dos EUA, em 1886. Sete outras constituições foram criadas antes da Segunda Guerra Mundial.



A Constituição dos EUA tem resistido ao teste do tempo. A pesquisa sobre constitucionalismo norte-americano tornou-se um projeto muito importante em pelo menos uma dúzia de países. E seus méritos estão sendo analisados com vistas à elaboração de novas constituições.



* A Constituição de 3 de maio de 1791 de Jan Matejko mostra a nova Constituição Polonesa mantida ao alto pelo rei Stanislaw August Poniatowski. Ele é carregado triunfalmente ao deixar o Castelo Real, visto ao fundo e onde quadro se encontra atualmente, para a Catedral de São João, em Varsóvia (Maciej Bronarski, fotógrafo, por cortesia do Castelo Real de Varsóvia)



*Albert P. Blaustein foi professor de Direito na Faculdade de Direito de Rutgers (Universidade Estadual de Nova Jersey). É autor de vários trabalhos acadêmicos sobre constitucionalismo, inclusive uma obra em seis volumes sobre a Constituição dos EUA intitulada Constitution of Dependencies and Special Sovereignties. Blaustein ajudou a elaborar mais de 40 constituições em todo o mundo e esteve em muitos desses países. Em 1991, ajudou a escrever a constituição da República Russa. O Professor Blaustein faleceu em 1994.